Sérgio abranches homenageia sebastião salgado

Sérgio abranches homenageia sebastião salgado

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Perdemos Sebastião Salgado, gigante da fotografia mundial. Ele via nela o instrumento para enxergar os despossuídos, o planeta, a esperança. Sebastião, que nos deixou aos 81 anos no último


dia 23, foi um dos três mais extraordinários artistas da fotografia de todos os tempos. Eles eram Ansel Adams (1902-1984), precursor das fotos contrastadas; Henri Cartier-Bresson


(1908-2004), o mestre do momento decisivo; e Sebastião Salgado (1944-2025), o artista das imagens épicas e profundamente humanas. Mestres da foto em preto e branco. Ansel Adams usou o


sistema de zonas para controlar tempo de exposição, garantindo foco em todo o campo de suas paisagens e detalhes nas sombras mais fechadas e no brilho mais intenso. Sua arte tinha como


missão a conservação da natureza. Sebastião Salgado compartilhava essa visão generosa da Terra, das grandes paisagens e o ativismo pela conservação do meio-ambiente. Henri Cartier-Bresson


usou singular capacidade de capturar o momento com sua objetiva para flagrar figuras e gestos humanos. Sebastião compartilhava com ele esse olhar o Outro com empatia e entendimento. Ele


trazia as almas das pessoas para suas imagens. A poética de suas fotos captava a dor e a beleza do ser humano. Em “Gênesis”, seu penúltimo grande projeto, fotografou as partes ainda


prístinas do planeta Terra e olhou para florestas, desertos, montanhas, vulcões, animais com o encantamento e empatia com que fotografava pessoas. Nenhum dos três grandes mestres via a


fotografia como algo técnico — uma câmera, filme, relação exposição/abertura, escolha entre tempo de exposição, fração de abertura da lente para a luz que vai sensibilizar o filme, o foco


desejado. A foto digital adicionou outras possibilidades. Ele fotografava buscando o mesmo grão do Kodak Tri-X 400 35mm, seu preferido e de Cartier-Bresson. Era sua assinatura. A fotografia


foi para os três mestres uma forma afetiva de olhar. Ansel Adams disse que “uma grande foto é aquela que expressa totalmente o sentimento mais profundo sobre o que está fotografando”. Para


Henri Cartier-Bresson, “fotografar é colocar na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração.” Sebastião Salgado definia sua arte fotográfica como um “meio para compreensão do ser humano


e de sua condição”. Não são grandes por acaso. Sebastião Salgado deixou impressa em preto e branco a estética da compaixão, da compreensão do Outro, da beleza da Terra e das pessoas, ainda


que mergulhadas na mais brutal tragédia. Sebastião e Cartier-Bresson eram mestres do documentário, do fotojornalismo. O francês fundou a célebre agência Magnum de fotojornalismo, da qual


Tião, o mineiro em Paris, foi o expoente por uma temporada. Falo dos três para deixar mais nítido o tamanho de Sebastião Salgado na fotografia mundial. Seu projeto “Trabalhadores” mostrou a


luta pela subsistência, pela terra, pela dignidade e contra a exploração. Fotos de coletivos, indignação, e de pessoas, dignidade. Foi também com o olhar no ser humano que realizou seu


esplêndido projeto “Migrações”, capturando o êxodo de deserdados, vítimas de guerras e genocídios. A dor e o desalento dos deslocamentos forçados, o exílio, se transformaram em belo e


sensível ensaio sobre o desamparo dos destituídos da terra. As expressões desses errantes expulsos de seus lugares falam com eloquência sobre sua dor. Seu foco fixava olhares ora


desoladores, ora esperançosos, na mais profunda singeleza e fragilidade humanas. O projeto adoeceu Sebastião. Principalmente o genocídio em Ruanda. Sua alma abalada por tanto sofrimento


esvaía-se. Foi quando Lélia Wanick Salgado, companheira de toda a vida, teve a ideia salvadora de reconstruir a natureza destruída na fazenda da família que ele herdou. Revigorado pelo


retorno à vida das árvores, águas, animais, Tião se curou e se transformou. Voltou sua lente para o Planeta, para as mais primitivas paisagens intocadas da Terra. Levou oito anos para


realizar “Gênesis”, uma ode à vida. Foi praticamente uma viagem no tempo para surpreender a pré-história da Terra nos mais remotos locais ainda intocados. Em continuidade a essa ideia de


volta aos primórdios, Sebastião Salgado concebeu seu derradeiro grande projeto fotográfico, “Amazônia”. Nele buscou nas comunidades indígenas o que tinham de mais autêntico, de mais


preservado em sua presença ancestral, da qual o grande legado foi a própria floresta amazônica. Este era Sebastião Salgado, cidadão do mundo. Mas havia outro, o Tião mineiro, meio caipira,


canivete na cinta, brincalhão, seresteiro, que comia o final das palavras ou as remodelava na fala quase cantada com a mesma métrica do chiado do carro de boi. Tião mineiro fotografava


cantarolando modinhas caipiras. Míriam Leitão, que o acompanhou na expedição junto ao povo Awá-Guajá, o ouviu cantando baixinho, “que beijinho doce, foi ela quem trouxe de longe pra mim”,


enquanto fazia fotos épicas e de enorme beleza dos indígenas. Sebastião do mundo, Tião mineiro, um pouco capixaba deixou-nos órfãos todos que dele gostávamos e nos deslumbramos com suas


imagens.