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Tan concilia histórias sombrias com desenhos surreais Há um equilíbrio nas ilustrações de Shaun Tan. Você olha para elas, e olha, e olha, e pode continuar assim por um tempo longo. Sozinhas,
elas já contam histórias, embora o artista australiano (filho de malaio) tenha se dado ao trabalho de escrever pequenos textos para contar o que se passa nos desenhos. Quando são tristes ou
sombrios, existe um contraponto na parte escrita ou mesmo nos traços e nas cores. O mesmo acontece quando as ilustrações são luminosas ou coloridas e a história narrada tende a ser
pesada. Em entrevista à Gazeta do Povo, concedida por e-mail, Tan explica que a harmonia nos seus trabalhos não é acidental. Ele a persegue com afinco. Tan venceu o Oscar 2011 de melhor
curta-metragem de animação com o filme The Lost Thing, de 15 minutos, codirigido com Andrew Ruhemann e baseado no livro homônimo do autor. Ele ilustrou uma dezena de livros para outros
escritores e, como senhor de todas as etapas da escrita à arte , produziu cinco títulos. Destes, dois saíram no Brasil: A Chegada e o mais recente Contos de Lugares Distantes, publicado
pela Cosac Naify. AO LER OS SEUS LIVROS, EU FIQUEI ME PERGUNTANDO SE VOCÊ DESENHA ANTES DE ESCREVER. POR EXEMPLO, NO CASO DE "O BÚFALO DO RIO" (PRIMEIRA IMAGEM À ESQUERDA). VOCÊ
PODERIA COMENTAR SOBRE O SEU PROCESSO DE CRIAÇÃO DAS HISTÓRIAS? Sim, esse é um bom exemplo de como muitas das minhas histórias começam, por acidente, com imagens visuais bem simples. Essa
história começou com um desenho à caneta de um animal grande, que, por acaso, parecia bastante com um boi ou um búfalo do rio, de pé sobre as pernas traseiras. Eu queria que ele fizesse
algo, então fiz ele apontar para longe (um dos gestos mais fáceis de se desenhar). E aí eu pus uma menina, já que ele precisava de alguém com quem interagir; senti que ela precisava estar
segurando algum objeto, então eu a desenhei com uma caixa de papelão, como se ela precisasse entregar ou coletar alguma coisa. Depois, eu encontrei dificuldades em desenhar as pernas do
búfalo em pé, então eu as escondi no mato! Isso me fez pensar, então, sobre alguns terrenos baldios na minha vizinhança onde ninguém cortava a grama, daí veio a ideia de que esse animal mora
e aponta o caminho na minha própria rua. Eu gostei dessa ideia, o suficiente para adaptar o desenho para uma pintura à óleo. A imagem pronta ficou no parapeito da minha janela por cerca de
um ano até que eu decidi colocar uma descriçãozinha breve, como se estivesse concluindo-a com ideias mais difíceis de se desenhar: que o búfalo estivesse lá há muito tempo e fosse uma parte
já familiar da vizinhança, que ele é muito sábio, mas que nunca diz nada, e os tipos de problemas que ele cria. Antes que eu soubesse, eu tinha uma história completa (com ilustração) por
mais que ela fosse uma história só de meia página. Eu percebi que, se eu tivesse um número suficiente dessas imagens-histórias, eu poderia fazer um livro e, então, alguns anos e 15
histórias depois, eu completei uma antologia que eu decidi chamar de Contos de Lugares Distantes. PARECE QUE SUAS HISTÓRIAS ÀS VEZES TÊM ELEMENTOS MAIS SOMBRIOS, MAS AS ILUSTRAÇÕES SÃO
CLARAS (PENSO EM "RESSACA"). ÀS VEZES, OCORRE O OPOSTO, E AS ILUSTRAÇÕES SÃO SOMBRIAS (COMO NA HISTÓRIA SOBRE O RESGATE DAS TARTARUGAS) E O TEXTO É COLORIDO E SURREAL. COMO VOCÊ
EQUILIBRA ESSES ELEMENTOS? E COMO VOCÊ AVALIA SUAS HISTÓRIAS DEPOIS QUE AS TERMINA? Essa é uma observação muito interessante, e, para ser honesto, eu não tinha visto por esse lado. Mas
suponho que seja assim com quase qualquer tipo de composição, seja produzindo uma imagem ou escrevendo uma história, ou mesmo conversando: uma sensação de que precisa haver um equilíbrio.
Não somente entre luz e escuro, mas entre profundidade e trivialidade, seriedade e humor, ideias grandes e pequenas, e muitas outras coisas também. Eu acho que é porque a ficção precisa
ainda ter as mesmas sensações da vida real, que por si mesma não é nem uma nem outra coisa por inteiro, para poder ter credibilidade. Uma história sombria demais me parece meio irreal, do
mesmo modo que também me parece irreal uma história "colorida" demais. Então, em geral, eu mexo nas imagens e nas histórias até que elas me pareçam certas, equilibradas. A VERSÃO
BRASILEIRA DE CONTOS DE LUGARES DISTANTES INCLUI UM TEXTO EM QUE NEIL GAIMAN DIZ QUE SUAS HISTÓRIAS SÃO "SONHOS". VOCÊ SE INTERESSA POR SONHOS? Sim, na verdade, eu tenho bastante
interesse em sonhos, embora não como inspiração. Eu muito raramente uso imagens ou conceitos tirados diretamente dos meus sonhos na minha obra, porque eles costumam ser loucos demais! Mas eu
acho que uma boa história tem um paralelo forte com os sonhos, algo a ver com deixar de lado nossa "lógica" consciente para examinar nossas emoções ocultas. Tenho certeza que Neil
concordaria comigo, bem como a maioria dos outros artistas e escritores. Por exemplo, considerando de novo "O Búfalo do Rio", essa história se parece muito com um sonho: as
emoções são claras sentimentos de arrependimento, incerteza e nostalgia mas a forma delas é muito estranha e não pode ser aceita literalmente. E por conta disso está aberta à
interpretação: o búfalo pode fazer você pensar nos conselhos de um avô aos quais você nunca deu ouvidos, numa oportunidade perdida na sua vida profissional, ou mesmo como parte de sua
própria personalidade, qualquer coisa que essas emoções subconscientes possam evocar em cada leitor. E você precisa mesmo ter que procurar essas emoções, a história lhe ajuda a fazer isso
(como me ajuda também). Eu sempre me senti muito atraído pelas artes, literatura, filmes e programas de tevê que fossem, de algum modo, como sonhos que me fizessem pensar, desde a série Além
da Imaginação, de Rod Serling, às histórias de Júlio Cortázar, Haruki Murakami, Ray Bradbury e as centenas de escritores de ficção científica: pintores de Jerônimo Bosch a Magritte e Ernst,
ilustradores como Maurice Sendak e Raymond Briggs... Eu gosto de coisas "normais" também! Mas me sinto constantemente atraído pelas coisas que são ao mesmo tempo estranhas e
estranhamente verdadeiras, um modo enviesado de olhar para a vida cotidiana, em vez de um olhar direto, se é que isso faz sentido.