A ciência da nostalgia: por que nossas lembranças mais intensas vêm da adolescência

A ciência da nostalgia: por que nossas lembranças mais intensas vêm da adolescência

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_A adolescência é um dos períodos mais intensos e transformadores da vida — e também um dos mais incompreendidos. No livro “Que Saco! As Dores da Adolescência: Um Olhar Científico e Amoroso


para o Período Mais Complexo da Nossa Vida” (selo Vestígio), a psicóloga britânica Lucy Foulkes desmistifica essa fase, explorando temas como popularidade, imagem corporal, comportamento de


risco, bullying, relacionamentos e perdas._ _Pesquisadora da Universidade de Oxford, Lucy também mostra como os pais desempenham um papel crucial nesse processo, podendo influenciar


positivamente na formação emocional dos filhos antes que o mundo exterior assuma esse papel._ _No recorte a seguir, a autora explica — com base em estudos sobre desenvolvimento cerebral e


comportamento social — por que tantas das nossas lembranças mais marcantes vêm desse período e como ele molda nossa identidade._ As lembranças que as pessoas relatam com mais frequência são


recordações da adolescência e do início da idade adulta — dos 10 aos 30 anos. Verifica-se esse efeito independentemente da idade do participante que faz o teste: ele se aplica tanto a


octogenários quanto a pessoas de 35 anos. A isso se chama “lombada de reminiscências” e é uma das descobertas mais robustas nas pesquisas acerca da memória humana. É um fenômeno


surpreendente, porque tudo o que sabemos sobre a memória sugere que, em tese, os eventos pessoais mais recentes deveriam ser os que figuram com maior nitidez na lembrança, ao passo que


detalhes sobre memórias anteriores tenderiam a desaparecer. Porém, no que diz respeito aos momentos da vida realmente importantes para nós, a adolescência e o período dos 20 e poucos são os


que de fato contam. Existem algumas explicações bastante banais para esse aumento do potencial de recordação. Uma delas é que durante esses anos o cérebro funciona no auge de sua capacidade;


portanto, qualquer coisa que aconteça nesse período é armazenada em nossa memória de uma forma especialmente eficaz e duradoura. Outra é que essa fase envolve muitas estreias e muitas


experiências inéditas — o primeiro amor, a primeira vez dirigindo um carro, a primeira vez morando longe da casa do pai e da mãe —, e que, simplesmente por causa de seu caráter de novidade,


tais eventos deixam uma marca mais profunda na mente. Tudo isso é verdade, mas há outra explicação: o período da vida abarcado pela lombada de reminiscências, sobretudo no intervalo dos 10


aos 20 anos, está fundamentalmente vinculado à descoberta da identidade. Trocando em miúdos, temos a lembrança de acontecimentos desses anos porque eles fazem de nós a pessoa que somos.


Estou falando aqui sobre a adolescência: o período de desenvolvimento que começa com a puberdade, quando uma enxurrada de hormônios desencadeia significativas mudanças psicológicas, físicas


e neurológicas na mente e no corpo, e termina quando a pessoa faz a transição para longe da unidade familiar e assume seus próprios papéis e responsabilidades da vida adulta. Logicamente,


acontecimentos e relacionamentos que definem a identidade acontecem desde o momento em que nascemos e continuam a acontecer idade adulta afora. Mas a adolescência tem importância destacada


por uma série de razões. EXPERIÊNCIAS DEFINIDORAS Para começo de conversa, graças ao vasto desenvolvimento neurológico e cognitivo deflagrado pela puberdade, os adolescentes são


biologicamente impulsionados para buscar o tipo de experiências definidoras de identidade que são mais propensas a se conservar na memória. Muitas de nossas lembranças adolescentes envolvem,


por exemplo, nossos amigos. Por quê? Os adolescentes se importam muito com o que seus pares pensam deles, o que em larga medida impulsiona o comportamento adolescente clichê com o qual


estamos tão familiarizados: a inibição, o constrangimento, as panelinhas de amigos, os romances intensos. Volta e meia os adolescentes são ridicularizados por isso, mas na verdade faz muito


sentido biológico: para sobreviver além da família e se integrar a um novo grupo social, é sensato que um adolescente passe um bocado de tempo refletindo sobre se as pessoas o aprovam e se


ele se encaixa ou não. Os adolescentes ajustam seu próprio comportamento e até mesmo seus pensamentos para se alinharem com os de seus pares, porque isso é necessário para alcançar a


segurança e o senso de pertencimento que vêm a reboque de fazer parte de um grupo. Como resultado, nessa idade as experiências com os pares são especialmente notáveis e potentes, engendrando


memórias formativas. O processo de crescer e deixar a unidade familiar não se resume apenas a encontrar amigos, mas gira em torno também de encontrar um companheiro ou companheira, o que


significa que os adolescentes são de maneira geral bastante estimulados a engatar relacionamentos românticos e viver experiências sexuais. É provável que esse seja o sentido da adolescência.


De novo, tal imperativo biológico significa que os adolescentes acabam tendo algumas intensas experiências de sexo e amor que definem sua identidade — amiúde, como veremos, em tenra idade.


Por fim, os adolescentes são biologicamente instigados a correr riscos, porque isso lhes permite explorar o mundo e estabelecer sua independência, e mais uma vez construir relacionamentos


além de sua família imediata. Assim, podemos constatar que todos esses impulsos lógicos, necessários e primitivos significam que, na adolescência, acabamos às voltas com os tipos de


situações que criam memórias poderosas e automoldantes, aquelas de que todos nós lembramos em detalhes, mesmo muitos anos depois. MENOS TEMPO COM OS ADULTOS Não se trata apenas de biologia.


Para adicionar lenha à fogueira, os impulsos biológicos da adolescência entram em ação no exato momento em que uma mudança monumental ocorre também no mundo exterior. Em muitos casos ao


redor do mundo, é por volta da época da puberdade que as crianças deixam a aconchegante segurança da pré-escola ou do ensino fundamental I e II (o antigo primeiro grau, ou escola primária e


ginásio) e iniciam a escola de ensino médio (o antigo ensino secundário, segundo grau ou colegial), o que acarreta uma mudança completa em seu mundo social: um grupo totalmente novo de


colegas, e muito menos tempo com adultos. Em 1961, o sociólogo James Coleman escreveu que, com a mudança para o ensino médio, os adolescentes são “despejados em uma sociedade de pares”, e


isso continua sendo tão verdadeiro hoje quanto naquele momento histórico. Nos primeiros anos de escola, o mundo social de uma criança é limitado e previsível: as crianças passam a maior


parte do tempo em um pequeno grupo familiar de colegas. São monitoradas de perto pelos professores — e muitas vezes, durante a maior parte do dia, por um único professor, que conhece bem a


dinâmica social da classe. Fora do ambiente escolar, qualquer socialização entre os pares é normalmente organizada e supervisionada pelos pais e mães ou outros adultos, e em geral as


atividades são estruturadas, a exemplo de jogos ou esportes. Os pais e mães tendem a saber os nomes dos amiguinhos de seus filhos e filhas e muitas vezes também conhecem os pais e mães dos


amiguinhos. Com a mudança para o ensino médio, tudo se modifica. O grupo de colegas de repente fica enorme e desconhecido, e muito rapidamente a socialização passa a ser organizada pelas


próprias crianças, não pelos adultos. A socialização fora da escola se altera e adquire uma feição desestruturada e desprovida de supervisão. Essa é a fase das festas, dos encontros em


diferentes lugares da cidade, de ficar de bobeira em “rolês” no parque até tarde da noite. Os pais e mães já não sabem os nomes de todos os amigos dos filhos, ou mesmo de nenhum deles, e


muitas vezes não sabem com quem seus filhos estão em um determinado momento. Cerca de um ano após o início do ensino médio, a restrição e o controle protegidos por muros da socialização


infantil foram completamente destruídos. Em seu novo contexto social, os adolescentes não apenas desenvolvem um profundo interesse biológico por amigos, sexo e riscos, como também se veem em


um cenário perfeito para agir de acordo com esses interesses. Tais quais jornalistas jogados em uma zona de guerra, os adolescentes se encontram no lugar em que coisas interessantes vão


acontecer. Na verdade, não seria possível conceber uma melhor combinação de fatores capazes de permitir a ocorrência de eventos memoráveis e de grande impacto. VEJA TAMBÉM: