Bolsão de sonho e de pó

Bolsão de sonho e de pó

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A Rua Helena Carcerari Piekarski, antiga Avenida do Progres­­so, não é conhecida dos curitibanos. Jamais seria escolhida para uma passeata, até porque mal pode ser identificada nos


sofisticados mapas virtuais. Desafia GPS de último tipo. Nem taxista escolado a localiza. Mesmo assim, tornou-se motivo de orgulho para as 2,5 mil famílias que vivem no Bolsão Audi-União,


uma das mais de 258 zonas favelizadas da capital. Há pouco, com mais razões. Beneficiada pelo Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, com R$ 16,7 milhões, a via recebeu asfalto,


amenizando um dos principais dilemas do bairro – a poeira que arruína os pulmões e suja a roupa nos varais. A visita de homens e máquinas fez um bem danado à estima dos moradores. Em enquete


feita pela Gazeta do Povo ano passado com a população que circulava na Rosa Piekarski, o resultado foi unânime: ninguém sonhava morar noutro local. Quiçá mais próximo do Terminal do Capão


da Imbuia, onde se dá a baldeação do ônibus que vem do Centro. É difícil afirmar, mas a escolha da "passarela" do Bolsão Audi-União para a chacina ocorrida na noite do último


sábado – com saldo macabro de oito mortes, dois feridos, e cerca de 10 mil pessoas se trancafiando dentro de casa – foi estratégica. O tráfico, além da exibição de força, como frisou o


repórter Guilherme Voitch em texto publicado ontem pela Gazeta, se ocupa de ferir as esperanças. E não haveria melhor lugar para intimidar a turma do Audi-União do que ali, num território


que se tornou o que havia de mais parecido com bem público num raio de pelo menos cinco quilômetros. A matança de sábado é o que parece: um problema de segurança pública. E o que não parece


também: um problema de urbanismo. Qualquer dúvida, é só se aventurar por míseras duas quadras da região e tirar as conclusões. O Bolsão Audi-União, à revelia dos que afirmam serem todas as


zonas favelizadas idênticas, nasceu de uma ocupação organizada, mas não deu sorte. Quando as famílias chegaram, as ruas estavam traçadas e os lotes divididos em partes iguais. No dia em que


fosse feita a regularização fundiária, não haveria a trabalheira de ter de tirar gente de casebres e puxadinhos erguidos no meio do caminho ou na beira dos rios. Até a própria Avenida


Progresso estava traçada. Não à toa, ali se estabeleceram supermercados, padarias, farmácias, lojas de roupa. Nem as ocupações mais antigas, hoje quase 100% regularizadas, como a Vila das


Torres, desfrutam de tanta variedade de serviços. O progresso da avenida, contudo, não bastou para salvar o Bolsão Audi-União da tragédia do último sábado. O que era de se esperar. Mesmo


tendo nascido de forma racional – apesar de ser uma ocupação –, o bairro está espremido entre a BR-277 e a linha do trem. Entrar ali é um exercício de paciência, perícia e arte de fazer


contornos, passar por baixo de viadutos e mentalizar marcos urbanos em meio à monotonia da paisagem suburbana. Pois é. A população bem que se esforçou, mas a chegada da polícia, da


ambulância, do ônibus, do taxista e de qualquer pessoa – garantia de que um lugar pode ser habitado e cuidado como qualquer outro – não é possível naquelas bandas. As obras do PAC foram


bem-vindas. Estão garantindo 419 casas de alvenaria, mas ainda não mudaram o cenário, até porque o cenário, dado seu isolamento, se desmanchou naturalmente. É o caso da Vila Icaraí – uma


vizinha miserável, um bolsão de pobreza dentro do bolsão. Ali não há quadras bem-traçadas nem rua do comércio. Seitas se alternam com barracões de lixo, onde mora gente, e vendedores de


churrasquinho de gato. Com o PAC, 295 famílias serão retiradas do local – as outras 392 terão de esperar novos programas. Difícil imaginar que no local – além da luta diária por um prato de


comida – haja gente se ocupando do tráfico, e com os requintes verificados na chacina de sábado. Caso a versão da Polícia Militar se confirme, a dedução é só uma: os traficantes tiraram


proveito da informalidade gritante do Icaraí da mesma forma que seus rivais tiram proveito do isolamento da Vila União. Com perdão ao trocadilho, contra o tráfico uma boa saída seria o


tráfego. Mesmo que aumente o poeirão que tanto incomoda as donas de casa, não há de ser nada ter de aguar a roupa tantas vezes ao longo do dia.