Nem que me mordas, zé pereira!

Nem que me mordas, zé pereira!

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“Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu!” – assim começava a esbórnia naqueles velhos carnavais, comemorados em altos brados com os vivas ao Zé Pereira, anti-herói brasileiro sobre quem


recaem todos os males e malfeitos deste impávido florão da América, aqui onde o papagaio come milho e o periquito leva a fama. Viva o Zé Pereira! Quem não há de conhecer um Zé Pereira? Veio


para o Brasil com as primeiras caravelas, limpava o penico do Pedro Álvares Cabral e, com a vinda da família real para o Brasil, melhorou um pouco de vida: enquanto os ricos portugueses


acompanhavam a procissão e os mais condecorados carregavam o andor, o pobre do Zé Pereira perseguia o santo. “Olha a mangueira aí, gente!” Grito de guerra da escola de samba, o alerta na


Marquês de Sapucaí veio do Zé Pereira, quando avisava aos que carregavam o andor que na curva em frente o galho de uma mangueira se estendia à rua, pondo em perigo o santo da procissão:


“Olha a mangueira aí, gente!” Dizem os historiadores, o verdadeiro Zé Pereira foi um sapateiro português chamado José Nogueira de Azevedo Paredes, criador em 1846 do entrudo, a festa


pecaminosa de introdução à Páscoa. Ao som de zabumbas e tambores, a folia do Zé Pereira tinha um lado grosseiro, violento, imundo. Os foliões lançavam uns sobre os outros “limões-de-cheiro”


(pelotas de cera líquida, feitas à mão pelos escravos e vendidas nas ruas para as nossas elites aprontarem das suas e acusar os maus modos da plebe), pó de cal que chegava a cegar, vinagre,


urina e outras sacanagens, até o aparecimento do lança-perfume, do confete e da serpentina que, em boa hora, tirou o Rei Momo da sarjeta. > Quem não há de conhecer um Zé Pereira? >   


Veja também Foliões da mesma família, em Curitiba o Zé Pereira só mudou de hábitos em 1864, quando os imigrantes europeus, não muito afeitos ao mau cheiro do entrudo, aboliram os maus


hábitos e ai de quem tirasse o pirulito pra fora para se aliviar na Praça Tiradentes. Daí que surgiu o Beco do Mijo, nos fundos da Catedral. Desde aqueles idos o carnaval em Curitiba


requeria alvará de licença, conforme um anúncio do “Bando Carnavalesco” publicado no jornal _Dezenove de Dezembro_ de 1867: “O Diretor da Sociedade Carnavalesca novamente criada nesta


Capital, tendo conseguido do chefe de polícia a licença para formar o bando e dar bailes a 3,4 e 5 de março, convida quem desejar fazer parte a vir assinar o seu nome na lista de sócios”. No


carnaval dos “limões-de-cheiro”, a revista satírica _Olho da Rua_ (fevereiro de 1908) publicou um soneto que bem “espelhava a animação e a irreverência” do hoje maldito carnaval curitibano:


“Depressa veste teu dominó preto E vamos à Rua XV alegremente O teu braço no meu por entre a gente Nas ondas deste povaréu inquieto Hão de aplaudir o teu perfil De polaca lindíssima e


decente E aí, diante de qualquer coreto Havemos de dançar como um demente A valsa e o carque-warque requebrado No fim hei de ficar bem porreado Beberei a valer nem que me mordas A todos


mostrarei meu grande rabo E tu, de braços dados com esse diabo ostentarás tuas gambias gordas” Por outro lado, naqueles idos dos bandos carnavalescos – devem ter contado os cronistas do


_Dezenove de Dezembro_ – as pessoas avessas à folia entravam numa cova rasa e se cobriam com palhas e folhas secas. Permaneciam enterradas vivas até Quarta-Feira de Cinzas, para o diabo


pensar que estavam mortas e, assim, se esconderem das tentações. Depois de duas semanas indo e vindo a pé de casa para o trabalho – por não dispor de quase 10 mirréis para o ir e vir da


capital –, o coitado do Zé Pereira curitibano ganha um alento ao afogar suas mágoas de desempregado no pré-carnaval de rua, folia sem eira nem beira ou chapa branca, onde as águas ainda


rolam com a quadrinha famosa: “E viva o Zé Pereira / Pois que a ninguém faz mal / Viva a bebedeira / Nos dias de carnaval”.