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O conhecimento do Direito requer o diálogo com outras áreas do conhecimento e, na História do Direito, esse diálogo se dá de forma mais natural e, ao mesmo tempo, muito necessária. É o que
defende o cientista político Christian Lynch, um dos convidados do VIII Congresso Brasileiro de História do Direito, realizado em Curitiba em setembro. O acadêmico, que alia formação em
direito aos estudos da área políticos, faz uma análise articulada da realidade brasileira. Sem apontar vilões ou mocinhos, ele ressalta a necessidade de alternância no poder. Durante a
conversa com o JUSTIÇA & DIREITO, ele também fez uma análise dos papéis que estatistas e liberais têm na sociedade brasileira e como isso tem influência na formação política do país.
Qual é a importância de estudar a História do Direito? Essa é uma pergunta que demanda várias respostas alternativas. Eu acho que o aprendizado da História do Direito, em primeiro lugar, tem
um efeito profilático na área jurídica, porque o ensino jurídico é muito voltado para a área prática e carece muito de uma atenção reflexiva. A História do Direito fornece àquele que a
estuda uma dimensão sobre o Direito, assim como outras disciplinas: Direito Dogmático, Sociologia Jurídica e Filosofia do Direito. Você consegue ver o fenômeno não isolado, mas no seu
contexto social e econômico, sobretudo no caso específico da História do Direito, no tempo. Acho que a história tem um segundo efeito profilático na área, que combate certa normativa do
direito – não da estrutura jurídica em si, que é normativa porque se estudam normas – mas da ideia de que o Direito é sempre pensado como um instrumento de modificação da realidade. Nisso o
estudo da História do Direito mostra que aquilo que pensam, que o direito serve apenas para fazer justiça, aquilo que devia ser feito ou não devia mudou muito com o tempo. O estudo serve
para mostrar que continuará mudando. Então é possível ter uma compreensão muito maior do que aquela que se tem numa perspectiva _ahistórica_ do direito. Quais traços políticos de outros
momentos históricos do nosso país podemos apontar como de grande influência sobre o nosso momento? É uma resposta difícil. Do ponto de vista da luta política eu acho que uma das dimensões
que marcam a atualidade brasileira é o acirramento das disputas político-partidárias e a criação de uma dicotomia marcada por uma popularização muito forte do campo político. O que há, na
verdade, nesse sentido que a história no Brasil ajuda a explicar essa popularização é, de um lado, uma estruturação dicotômica do campo político, que vem da própria formação do país. Há uma
oposição entre o pensamento que vou chamar de “nacional-estatista” – que ao contrário do que se pensa não data da era Vargas –, mas sim do despotismo ilustrado do século 18, que foi a
primeira ideologia de modernização pelo alto e teve uma grande penetração nas áreas periféricas e atrasadas da Europa daquela época. Parte da Itália, Rússia, que preconiza, na verdade, uma
ação do próprio Estado sobre a sociedade a fim de modernizá-lo, uma coisa incompreensível no mundo anglo-saxão. Veja também E qual o papel do Estado nesse contexto? O Estado é visto como
sendo uma espécie de motor da mudança social, isso fica claro no caso português, no estudo de uma personalidade como Marquês do Pombal. De alguma maneira, o Brasil herdou a maneira de pensar
sua própria sociedade, até mesmo o liberalismo, esse pensamento nacional-estatista se mistura com o nacionalismo, que preconiza o papel do Estado como motor dessa mudança social, e quanto
mais atrasado o país é, mais força tem essa ideologia. Esse pensamento foi responsável por uma das melhores mudanças que aconteceram na história brasileira, nós podemos pensar a construção
do Estado Nacional no começo do segundo reinado, na era Vargas e a industrialização. Acho que estamos em um momento de desbotamento da verdade tal como ela foi inventada no começo do segundo
governo Lula. Pode-se dizer que o atual governo desmoralizou o nacional desenvolvimentismo e o nacionalismo na eleição do ano passado, na completa transformação da sua pauta de um ano para
o outro depois da eleição. E o que há do outro lado dessa estruturação dicotômica? Do outro lado, há essa ideologia que podemos chamar de liberal, que reivindica os direitos da sociedade, a
sua autonomia, a necessidade de tornar o Estado dependente da sociedade. Os dois lados, na verdade, têm prós e contras na maneira de pensar. O excesso de nacional-estatismo leva
eventualmente ao regime autoritário. E o excesso de visão liberal, que muitas vezes é bom, porque é indispensável no mundo de participação política e democracia, no caso brasileiro muitas
vezes tende para o lado oligárquico. Quando olhamos essa formação, conseguimos entender melhor essa polarização que existe hoje. Isso decorre do fato de que pela primeira vez a gente tem um
governo de esquerda no poder e que está no poder há tempo demais. Seu próprio projeto político se esgotou, se deteriorou, se erodiu. O que fica na verdade é a ideia de que os representantes
históricos das duas tendências devem se alternar no poder. Mas isso é apenas uma dialética, não tem uma que está certa e uma que está errada, depende do andamento da cena política
brasileira. Como você vê hoje as liberdades dentro da nossa sociedade, em comparação com outros momentos históricos e com os ideais de liberdade. A gente pode dizer que é uma sociedade
avançada? As sociedades periféricas que saíram da colonização, como o Brasil, têm um andamento diferente das sociedades antigas europeias. A respeito especificamente dessa questão, o que se
pode dizer é que é uma característica dessas sociedades em que o aparato jurídico-político, as declarações de direito e as constituições encontram uma sociedade muito diferente, mas elas são
trazidas para cá como indutoras do processo de modernização também. O que há de mais comum e natural é o contraste entre o aparato jurídico-político moderno com uma sociedade que é muito
atrasada, e a ideia de que existe um descompasso muito grande entre as duas coisas. Entre aquilo que podemos chamar de país real e aquilo que chamamos de país legal. Quantas vezes você não
se deparou com a ideia de que a Constituição determina alguma medida que não encontra nenhum respaldo na realidade? É isso a que eu me refiro, esse ato de que o país legal é o país real,
sendo uma característica de todos os países periféricos, sobretudo aqueles que saíram de uma colonização. O que acontece é que com o tempo isso vai mudando, a todo tempo você tem uma
elevação paulatina desse país real à altura do país legal, toda história desses países é de progressiva efetivação dos direitos de efetivação da liberdade. O mesmo direito que já existia há
200 anos, 100 anos no ordenamento constitucional vai recaindo cada vez mais sob o conjunto da população. É como se Constituição fosse uma meta e não um fato? Exatamente. Mas isso foi dito
por um intelectual brasileiro famoso, que é o Euclides da Cunha, quando ele se refere à nossa primeira constituição, ele o faz assim: “Puseram o marco lá na frente, estamos ainda agora
penando para conseguir alcançá-lo”. As formas chegam antes das substâncias. O que a gente pode dizer hoje é que, quando olhamos a história constitucional brasileira de uma perspectiva de
longa duração, o que vemos na verdade é cada vez mais essa sociedade se apoderando do aparato jurídico estatal. Na verdade a sociedade vai elevando ao nível dessas liberdades. Certamente o
Brasil nunca esteve numa situação tão privilegiada do ponto de vista do gozo das liberdades, das garantias e do acesso à justiça. Mas é claro que ainda há esse setor dos menos favorecidos,
onde esse acesso a esses direitos ainda é muito precário. Nós vemos na onda de violência, precariedade do direito à vida, das garantias trabalhistas e do direito à educação. Mas se espera
que esse “progresso” continue, e isso vai continuar existindo. É o processo natural de equalização das condições de vida.