Play all audios:
por GILBERTO MORBACH Há muitos mitos, muitas informações erradas, muitas mentiras e muitos mal-entendidos gravitando em torno da recente decisão do STF, que alterou o entendimento anterior
do Tribunal e desautorizou a execução da pena antes do trânsito em julgado. Há quem incentive isso por má-fé. Sempre há. Mas, na medida em que uma de minhas premissas é exatamente a de que,
entre nós, jamais se naturalizou a discussão jurídica responsável, outra delas é a de que muitas pessoas bem-intencionadas acabam por compreender de forma errada o que foi que a Suprema
Corte decidiu. É a essas pessoas que, dentro do que me cabe, tento me dirigir. Vamos lá. A decisão do STF foi pela procedência das _Ações Declaratórias de Constitucionalidade_ (ADC) 43, 44 e
54. Em linhas gerais, e em termos claros, as ações pediam que o Supremo declarasse ser constitucional o art. 283 do Código de Processo Penal (CPP). Assim, em abstrato mesmo. A discussão era
sobre a constitucionalidade de um dispositivo infraconstitucional. O artigo, cuja redação é de 2011, diz que “[_n_]_inguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária
ou prisão preventiva_”. A constitucionalidade do dispositivo foi analisada à luz do princípio da presunção de inocência, sacralizado como cláusula pétrea na Constituição Federal em seu art.
5º, LVII, que diz exatamente o seguinte: “_ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória_”. Daí por que a decisão do Supremo foi correta. Peço que
meu interlocutor volte, leia cada um dos dispositivos, e tente indicar onde, como e por que o art. 283 do CPP contraria o texto da Constituição. Não há qualquer inconstitucionalidade.
Porque, para que a norma processual penal fosse considerada inconstitucional de forma legítima, seria preciso demonstrar que o texto da Constituição não _apenas_ autoriza, mas _exige _a
prisão antes do trânsito em julgado. Esse é o ponto. Essa era a discussão, e ela é realmente assim tão simples. Ela foi _tornada _complexa porque o foco foi direcionado para muito além do
que realmente estava em análise. Foi tornada complexa porque foi fulanizada, como se o Supremo Tribunal Federal estivesse julgando o caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi
tornada complexa porque muito se discutiu sobre a impunidade no Brasil, sobre o combate à corrupção, porque se disse por aí – e, surpreendentemente (ou não), o próprio ministro Luiz Fux
reforçou a (falsa) tese – que presos perigosos seriam soltos aos montes. Foi complexizada ainda mais pelo próprio Supremo Tribunal Federal, que escolheu, deliberadamente, tornar-se refém da
opinião pública e submeter-se menos à autoridade do direito e mais àquilo que pensa ser a vontade geral. Primeiro: O julgamento era, como dito, de Ações Declaratórias de Constitucionalidade.
_Não se tratava de nenhum caso concreto. _A discussão é abstrata, porque esse tipo de ação serve tão somente para que se declare a (in)compatibilidade constitucional de determinado texto
legislativo. O julgamento _não era _sobre Lula, José Dirceu ou qualquer outro preso ao longo da Operação Lava Jato. _Muito menos _o julgamento era sobre Alexandre Nardoni ou Champinha, como
afirmou o ministro Fux. Prestem atenção: NENHUM DELES ESTAVA PRESO EM RAZÃO DO ENTENDIMENTO ANTERIORMENTE FIXADO PELO SUPREMO. Champinha, inclusive, sequer foi preso em razão de qualquer
regra do CPP, dado que era menor de idade à época do crime por ele cometido (e, embora isso enseje todo tipo de discussão, nenhuma delas está relacionada ao julgamento das ADC). O que me
leva ao segundo ponto. O SUPREMO NÃO PROIBIU A PRISÃO APÓS DECISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA. O SUPREMO SEQUER PROIBIU A PRISÃO _ANTES _DA DECISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA. TODO PRESO CONSIDERADO
PERIGOSO AINDA PODERÁ SER PRESO PROVISORIAMENTE. É POR ISSO QUE A INFORMAÇÃO DE QUE 170 MIL PRESOS SERIAM SOLTOS É, OBJETIVAMENTE, _FALSA__. _O número máximo, segundo o Conselho Nacional de
Justiça, é 4.895. Desses, nenhum seria ou será solto automaticamente. Cada caso é analisado no próprio mérito. É verdade, Lula foi solto. E é verdade, não parece mais razoável que se tenha
de aguardar _quatro _instâncias para que a pena possa vir a finalmente ser cumprida. Mas essa é a exigência da ordem legal vigente. E a soltura de Lula não serviu de _causa, _mas foi a
_consequência_ de uma decisão judicial que, de novo, é correta. E é correta porque fez valer exatamente essa exigência da ordem legal vigente. Àqueles que se incomodaram com a soltura do
ex-presidente, faço aqui três perguntas – e, acredite, não se trata de retórica e a tônica está longe de ser a do dedo em riste. Faço as perguntas com o espírito que espero que elas sejam
recebidas: de forma objetiva e sincera. A primeira pergunta é a seguinte: Qual é a inconstitucionalidade do art. 283? O que há, na Constituição, que diga que o Parlamento não poderia ter
deliberado e estabelecido aquela exigência em 2011? A segunda: Qual é o papel do Supremo Tribunal Federal? Não é exatamente o de fazer valer o que a Constituição exige? Finalmente, a
terceira, e mais importante pergunta: Será mesmo desejável que o Supremo Tribunal Federal passe a decidir não mais a partir da ordem constitucional vigente, mas a partir de juízos de
popularidade junto a maiorias eventuais que compõem a opinião pública? É interessante que deleguemos a ministros da Suprema Corte a competência de fixar normas gerais e abstratas com força
de lei? Essas são as questões fundamentais. A “narrativa” de um lado diz que, enfim, a justiça foi feita a um preso político, fruto de uma conspiração dos grandes veículos da mídia e da
direita; a do outro diz que as hienas do Supremo Tribunal Federal “mandaram soltar” o Lula e os outros bandidos, e quer favorecer a impunidade pra ver o país pegando fogo. Mas por trás da
pós-verdade há a verdade. O Supremo nada mais fez além de declarar a constitucionalidade de um dispositivo legal que nada tem de inconstitucional. Basicamente, o Supremo fez o que deve
fazer. Cumpriu seu papel: o de respeitar a vontade do Parlamento sempre que ela for compatível com a Constituição. Que também o Parlamento faça o que deve fazer e cumpra seu papel (que não é
o do Supremo): exatamente o de analisar consequências, deliberar a partir dos juízos de moralidade política e representar a vontade daqueles a quem representam. Ninguém é a favor da
corrupção. Que não se perca de vista, porém, tudo que podemos perder se abrirmos mão dos mais básicos princípios de legalidade e de competência institucional. O problema da impunidade e da
ineficiência da Justiça não está nos direitos fundamentais ou na observância das exigências do império da lei. Não está em um Supremo que declara a Constituição constitucional. Está, sim, em
um sistema recursal disfuncional que, bem ou mal, acaba por engendrar a própria degradação, ao permitir que aqueles que podem pagar transformem-no em instrumento protelatório. É _isso _que
deve ser enfrentado. O ENTÃO MINISTRO CEZAR PELUSO, AINDA EM 2011, PROPÔS UMA PEC DOS RECURSOS. ESSE É O MELHOR CAMINHO. SE A CONSTITUIÇÃO EXIGE O TRÂNSITO EM JULGADO, E ISSO É CLÁUSULA
PÉTREA, A SAÍDA CORRETA — SE OS PARÂMETROS ATUAIS NÃO MAIS NOS PARECEM RAZOÁVEIS —, ENTÃO QUE SE ALTERE O MOMENTO DO TRÂNSITO PARA APÓS A DECISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA, TRANSFORMANDO OS
RECURSOS AOS TRIBUNAIS SUPERIORES EM AÇÕES CONSTITUCIONAIS RESCISÓRIAS AUTÔNOMAS. _Nada disso é papel do _STF, que acertou. Acertou porque fez valer o que a lei exige. Lula foi solto?
Paciência. Se não gostamos das consequências do cumprimento da lei positivada, precisamos assumir de frente a responsabilidade de alterá-la _de forma legítima. _Não por meio de ativismo
judicial, não por meio de emendas apressadas que não levam direitos fundamentais e cláusulas pétreas em consideração. Cabe ao Parlamento. E, se não há vontade política, cabe a nós também. O
Supremo é só o Supremo; esperar mais do que isso é insistir no que já temos feito há tempo demais: esperar por alguém que nos salve de nós mesmos.