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Em 2014, em “Textos de Regulação da Saúde n.o 4”, editados pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS), os profs. Pedro Costa Gonçalves e Licínio Lopes Martins faziam publicar um interessante
escrito sobre a lei-quadro que define o regime das entidades independentes de regulação da atividade económica. O título era, só por si, já muito instigador para o universo dos leitores da
revista da ERS, uma vez que a pergunta que lhe estava subjacente era muito simples: a saúde pode ser incluída, de forma seca e quase liofilizada, no tradicional universo da regulação que
Vital Moreira vem consagrando? Em nossa opinião, há uma grande distância entre os outros reguladores previstos na lei-quadro e a ERS. Esta, uma vez que se destina a uma obrigação
constitucional determinada e universalmente garantida, tem limitações genéticas, impossibilidades práticas de afirmação. Talvez não querendo ser mais explícitos na apreciação do anacronismo
dessa ERS quando olhados os sistemas europeus de saúde, os autores acima referidos dizem a terminar: “(…) considerando a complexidade do sistema de saúde e a já assinalável abrangência da
atividade regulatória da ERS, o maior desafio neste domínio não residirá tanto no específico exercício dessa atividade, mas mais na coordenação (e conjugação) dele com o âmbito de atuação do
universo plúrimo de entidades da Administração direta e indireta do Ministério da Saúde (em especial, a Direção-Geral da Saúde, a Administração Central do Sistema de Saúde, IP, a
Inspeção-Geral das Atividades em Saúde e as Administrações Regionais de Saúde).” Com elegância se consagrava o regulador não regulador, se afirmava o além conceptual que o desgradua perante
a realidade jurídica, económica e territorial do sistema. A lei orgânica do Ministério da Saúde mantinha, até há pouco, uma consideração estranha no seu artigo 20.o: “A Entidade Reguladora
da Saúde, abreviadamente designada por ERS, é independente no exercício das suas funções, estando sujeita à tutela do MS, enquanto autoridade de supervisão e regulação do setor da saúde, nos
termos previstos na lei e no respetivo estatuto.” Mesmo considerando nós que esta norma se mostra desgraduada pela lei-quadro e pelos estatutos da ERS de 2014, o princípio da existência de
uma tutela é, todos os dias, uma realidade confirmável. Se olharmos para o património regulamentar da ERS, podemos constatar a sua incipiência, e se reparamos no plano de atividades de 2017
confirmamos essa realidade. A ERS tem uma estrutura destinada à verificação jurídica e sancionatória, outra destinada aos utentes, uma outra para o registo e licenciamento e ainda uma última
para estudos. Se formos criteriosos, não podemos encontrar aqui a contextura tradicional dos reguladores e supervisores, uma vez que as componentes de determinação dos padrões de
comportamento económico, bem como de resposta e de verificação das obrigações públicas, não estão centralizadas nesta entidade. Ao ligarmos as competências de fiscalização entroncamos a ERS
com a Inspeção- Geral; as do licenciamento, sobrepomos a ERS com a DGS; e nos utentes, enquanto níveis de qualidade da prestação, as competências estão separadas entre muitas entidades, em
especial a Administração Central do Sistema e a ERS. Diz-se que a ERS se assevera na regulação de todos os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, do setor público, privado,
cooperativo e social, independentemente da sua natureza jurídica, nomeadamente hospitais, clínicas, centros de saúde, consultórios, laboratórios de análises clínicas, equipamentos ou
unidades de telemedicina, unidades móveis de saúde e termas. Ou seja, tudo o que existe está sujeito a regulação. Não é possível, não há qualquer hipótese de haver regulação com a integração
de todos estes universos, estabelecimentos e prestadores. Há ainda um domínio muito interessante que, sendo previsto nos estatutos, também não pode ser exercido de forma global pela ERS.
Diz o estatuto que o regulador tem a obrigação de “promover um sistema de âmbito nacional de classificação dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde quanto à sua qualidade
global, de acordo com os critérios objetivos e verificáveis, incluindo os índices de satisfação dos utentes”. Ora, o regulador tem, nos seus relatórios, informação sobre um vasto universo de
hospitais (também saúde oral) que nos dizem alguma coisa da qualidade do serviço prestado, mas por aqui se fica. Pode verificar-se que em centenas desses estabelecimentos se não encontra
resposta completa e fiável por parte do gestor e, em muitos outros, há uma deficiente prestação. O regulador, perante a circunstância, deveria indicar os “remédios” para cada um dos
prestadores, lançar mão dos seus poderes de supervisão e licenciamento para obrigar à apresentação dos dados em falta. Mas não, não há, em qualquer relatório da ERS dos últimos anos, um
desenvolvimento das ações de reparação sequentes aos estudos que seja sistemático e consistente. É por isso que consideramos que a ERS se afirma como um licenciador, vocação específica da
administração direta do Estado, e como um centro de estudos, tarefa típica dos observatórios. Perante tudo isto interessa perguntar: faz sentido manter a ERS? A nossa resposta é negativa.
Com a atual estrutura do Ministério da Saúde, a ERS não faz qualquer sentido. Já afirmámos, aquando da transferência do Infarmed para o Porto, que o governo deveria olhar a agregação da ERS
com o ente do medicamento. Talvez se conseguisse melhorar o universo do que é possível regular em saúde, talvez se considerasse a existência de um corpus de atribuições suficientemente
robusto para ponderarmos uma nova ERS. Mas, até lá, olhando também a lei orgânica do ministério, há muitas tarefas imprescindíveis. A maior delas é fazer terminar o regime minifundiário das
autoridades de saúde que, não se sabendo onde anda cada uma e até onde vão ou não vão, são uma fonte de desperdício incomensurável. Deputado do Partido Socialista